SILVEIRA E VARGAS ADV

A criminalização da advocacia criminal

A concepção geral que se tem da advocacia criminal é que advogados criminalistas têm a exclusiva função de “defender bandidos”. Constantemente, o papel do advogado criminal na defesa de direitos e interesses é subvertido em uma perspectiva unilateral e rasa que estigmatiza a profissão e desconsidera sua importante função desempenhada na contenção de arbítrios estatais.

Trata-se, pois, do que optamos por denominar de “criminalização da advocacia criminal”, cujas especificidades serão analisadas: (i) pela perspectiva da mídia no processo de fabricação de “vilões” e “mocinhos”, (ii) por seus impactos substanciais nos réus do processo penal e (iii) pelas suas consequências aos advogados criminalistas.

Os meios de comunicação são a maior fonte de obtenção, produção e divulgação de informações. Em um mundo conectado, em que basta ligar a televisão ou abrir o navegador no computador, tablet ou celular para que as notícias apareçam na tela, nota-se o importante papel desempenhado pela mídia no exercício de sua função social.

Como “função social da mídia”, entende-se o dever de informar, com imparcialidade, e representar a população na fiscalização dos negócios do Estado[1]. Com isso, transportando essa ideia para a prática, observa-se que, gradualmente, há um desvirtuamento da referida função em razão do monopólio informacional que a mídia detém, permitindo uma manipulação da população.

O maior problema surge, porém, quando esta manipulação midiática chega ao ponto de influenciar nas decisões dos três Poderes do Estado, sobretudo o Judiciário. Casos emblemáticos como o da Operação Lava Jato explicitaram que a intensa cobertura midiática de processos judiciais, embora possa ser positiva em alguns aspectos, em geral fazem com que o Brasil inteiro assista às condenações e absolvições e, assim, as visualizem como um verdadeiro espetáculo.

A manipulação, nesses casos, acontece na medida em que a mídia age sem a devida imparcialidade e define, ao divulgar informações sobre os processos, quais partes devem ser consideradas culpadas ou inocentes. No caso da Lava Jato, os veículos de informação adotaram uma abordagem enviesada desvinculada do mérito do julgamento, tratando réus como inimigos e gerando enorme comoção popular pelas condenações.

Tal parcialidade não se restringe à Lava Jato, uma vez que, além de causar os problemas já citados, corrobora a perpetuação de questões sociais mais profundas, como o racismo estrutural. Há, nesse sentido, uma fabricação conveniente e sensacionalista de “vilões” e “mocinhos”, criados em uma realidade que propicia essa dicotomia.

Neste ponto, é importante destacar que a liberdade de expressão e de imprensa não são absolutas, pois devem respeitar limites constitucionais estabelecidos para não irem contra outros direitos fundamentais. Eventuais situações de colisão entre princípios devem ser resolvidas por meio da ponderação, de modo que, se a liberdade midiática viola outras garantias constitucionais, pode esta ser sopesada e restringida.

Seguindo a linha apresentada por Uchôa de Brito[2], entende-se que a mídia posiciona-se na sociedade da informação como uma espécie de “quarto poder”, responsável por fixar no ideário social uma “opinião publicada” que substitui a opinião pública e subverte a função tradicional da mídia.

O referido processo ganha notoriedade principalmente na esfera penal, em que ocorre o pré-julgamento dos acusados com base nas rasas informações divulgadas e a contaminação do processo pela influência da opinião pública (ou publicada?). Nesse contexto, com fundamento em um suposto direito ilimitado à informação, a mídia viola princípios do direito penal, como a presunção de inocência, a ampla defesa e o contraditório, além dos direitos subjetivos à honra, à imagem e à privacidade do investigado.

Não se pretende de maneira alguma, no presente artigo, descredibilizar ou diminuir a importante função exercida pela grande mídia no processo de transformação social e na difusão de conhecimento e informação à sociedade. Busca-se atentar ao fato de que, no exercício dessa função, dada a sua significativa magnitude, é necessária a observância de deveres de verificação dos fatos, para que sua finalidade original não se converta em mero instrumento de retórica infundada.

Ainda no campo de influência da imprensa sobre a produção do pensamento social coletivo, cabe análise direcionada do papel central desempenhado pelos meios de comunicação de massa na produção de diretrizes normativas e valores socioculturais norteadores. Conforme aponta Marcelo Semer[3], a mídia exerce não somente um papel de estereotipagem distorcida dos agentes envolvidos nas notícias, mas também o de fabricação de uma realidade de “pânico moral” generalizado.

Dessa forma, através de uma cobertura que visa sobretudo à audiência e o lucro, a mídia acaba por se utilizar de sua prerrogativa para fabricar uma realidade desproporcional de intensa hostilidade e insegurança, que gera o medo de que a situação “vá daquilo a pior”.

Essa politização midiática do sistema de justiça gera impactos tanto na esfera social quanto na esfera jurídica, uma vez que operadores do Direito têm sua atividade diretamente influenciada por esses fatores. Assim, o raciocínio jurídico inerente à atuação jurisdicional passa a perder espaço para a superficialidade das percepções que são fabricadas pela mídia e posteriormente corroboradas pela opinião pública.

Com o avanço das redes sociais, essa questão se mostra ainda mais complexa. A abertura ao exercício da liberdade de expressão e de imprensa promovida pelos meios de comunicação digitais coadunam-se com a intensa agressividade dos usuários, o que impossibilita o diálogo democrático. Eis o paradoxo da rede: o caráter democratizante supostamente trazido por ela perde rapidamente sentido na medida em que as mídias digitais são utilizadas como ferramentas de propagação de discurso de ódio, divulgação de notícias falsas e violação dos direitos constitucionais dos acusados.

A desmedida exploração midiática da criminalidade gera impactos na esfera jurídica, como citado anteriormente, influenciando a atuação dos três Poderes. A cultura de insegurança perpassada pela midiatização da violência, figura-se, segundo Schneider, como a principal fonte legitimadora do clamor social. Dessa forma, passa-se a exigir uma resposta estatal urgente dos órgãos representativos e jurisdicionais, crescendo o apoio popular por medidas mais punitivas.

Com grande parte do Brasil internalizando diariamente tal clamor, o exercício da jurisdição e o papel contramajoritário do Poder Judiciário são significativamente cerceados pela pressão pública por medidas urgentes. A opinião publicada, então, pressiona o Judiciário a agir conforme os ditames sociais, desvirtuando o devido processo legal e, consequentemente, violando direitos constitucionais que deveriam ser preservados. Dessa maneira, magistrados sentem-se motivados ou pressionados a agir segundo a opinião pública.

No âmbito do Judiciário, a influência midiática não tem efeito apenas na atividade dos julgadores. Além de conduzir a decisão dos magistrados, a opinião publicada também interfere na atuação dos advogados criminalistas. Estes, consequentemente, entram para a defesa de seus clientes com grande reprovação social, haja vista que, dado o julgamento prévio realizado pela mídia sobre os réus, são quase que “acusados por tabela” por estarem exercendo sua profissão.

Nesse contexto, advogados que antes precisavam defender seus clientes apenas perante o maquinário penal, passam a ter agora que fazê-lo perante toda a sociedade, de modo a garantir que a influência da mesma não sobrepasse os fatos do caso. Isso prejudica a própria responsabilização dos culpados – tão almejada –, uma vez que, com vistas à aprovação social do réu diante da opinião pública e em uma posterior absolvição, a defesa do réu passa a ser pautada, também, em fatores emocionais, não necessariamente vinculados ao caso.

Existem diversos exemplos de criminalização da advocacia criminal que cabem menção no presente ensaio. Um caso emblemático é o da família Nardoni, em que o advogado de defesa de Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni, Roberto Podval, sofreu diversas hostilidades ao longo do julgamento. Na época, para além dos xingamentos direcionados, uma multidão que acompanhava o júri chegou a agredi-lo fisicamente com socos do lado de fora do Fórum de Santana, na zona norte de São Paulo. O caso serve para exemplificar a forma como julgamentos de grande comoção social podem ameaçar, significativamente, o exercício da advocacia criminal.

A mídia subverte a realidade e o pensamento social de tal maneira que fomenta o ideário irracional punitivista e faz com que os advogados dos acusados sejam igualmente vistos como “bandidos”. Ruy Barbosa já bem dizia que as tentativas de criminalização da advocacia devem ser repudiadas por toda a comunidade jurídica, pois representam um atraso ao Estado democrático de Direito.

A rasa narrativa de que advogados criminalistas “entram somente para defender bandidos”, como posto, desconsidera o direito de defesa e de presunção de não culpabilidade dos acusados, bem como ignora a importante função de garantia da aplicação da lei penal. Com isso, das duas, uma: ou defendemos a advocacia criminal, com seus pontos positivos e negativos, em prol do Estado democrático e do cumprimento das leis penais; ou nos rendemos à perspectiva imediatista e punitivista de criminalização da profissão, optando pela inobservância das garantias constitucionais.


[1] CAETANO, Filipe Ribeiro. Espetacularização do processo penal e as consequências do populismo penal midiático. Tese de Conclusão de Curso. Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica – RS, Rio Grande do Sul, p. 71, 2016.

[2] BRITO, Auriney Uchôa. Poder da mídia: Uma análise do direito penal na sociedade da informação. Direito da sociedade da informação. Temas jurídicos relevantes. 2009. pp. 8142-8144

[3] SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: O papel dos juízes no grande encarceramento. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. pp. 63-82

FONTE : https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-criminalizacao-da-advocacia-criminal-26122021

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