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A recuperação judicial do produtor rural

A atividade rural no Brasil, apesar do desenvolvimento industrial e urbano vivenciado nas últimas décadas, ainda é bastante predominante quando se analisa a composição do PIB nacional. As atividades rurais no Brasil são exploradas em dois tipos diferentes de organização econômica. No caso da produção de alimentos, por exemplo, de um lado se encontra a agroindústria ou o agronegócio, no qual se emprega tecnologia avançada, mão de obra assalariada, especialização de culturas, grandes áreas de cultivos, etc. De outro lado, está a agricultura familiar, na qual trabalham o dono da terra e seus familiares, existindo um ou outro empregado e geralmente desenvolvida em pequenas áreas1.

Em consonância com o ordenamento jurídico vigente, todas as pessoas, físicas ou jurídicas, que exercem atividade econômica típica de empresário, devem, obrigatoriamente, providenciar a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, conforme se depreende da leitura do art. 967 do CC. Apesar de ser considerado um ato meramente declaratório, o legislador restringiu à aplicação das regras próprias aos empresários ou sociedades empresárias somente àqueles que apresentassem a devida “regularidade”.

No caso da atividade rural, o Código Civil de 2002 assegurou tratamento favorecido, diferenciado e simplificado aos exploradores de atividade rural, permitindo, assim, que o empresário rural pudesse (ou não) requerer a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, caso em que ficaria equiparado ao empresário individual (arts. 970 e 971 do CC de 2002). De igual modo, a sociedade que exerça atividade própria de empresário rural e seja constituída, ou transformada, de acordo com um dos tipos de sociedade empresária, poderia (ou não) requerer seu registro, ficando, assim, equiparada à sociedade empresária (art. 984 do CC de 2002).

Portanto, a problemática da aplicação do instituto da Recuperação Judicial aos produtores rurais está exatamente no fato do Código Civil ter criado essa exceção, permitindo que a inscrição do Registro Público de Empresas Mercantis fosse facultativa para esta categoria de agentes econômicos.

Nesse sentido, as principais questões relacionadas à legitimidade do produtor rural para requerer Recuperação Judicial recaem sobre três aspectos fundamentalmente: (i) o produtor rural que exerce atividade empresária (na forma do art. 966 do CC de 2002), apesar de não estar registrado na Junta Comercial, faria jus à Recuperação Judicial?; (ii) O produtor rural precisaria comprovar a regularidade (registro) de sua atividade por no mínimo 2 (dois) anos, conforme preceitua o art. 48 da Lei 11.101/05, tendo que vista que o registro do produtor rural é facultativo?; e, por último, (iii) processada a Recuperação Judicial do produtor rural, qual seria o marco temporal para definir os crédito submetidos e não submetidos aos efeitos da Recuperação Judicial?

A legitimidade do produtor rural – Lei 11.101/05 e Código Civil de 2002.

No que concerne à legitimidade ativa para o requerimento da Recuperação Judicial, a Lei 11.101/05 foi clara ao determinar que é legitimado para requerer Recuperação Judicial o titular da atividade empresária em crise econômico-financeira, seja ele empresário individual ou sociedade empresária.

Portanto, em regra, a legislação pertinente à Recuperação Judicial se mantém aplicável tão somente ao empresário e à sociedade empresária e, mais recentemente, também aplicável à empresa individual de responsabilidade limitada, denominada “Eireli”, instituída pela Lei n. 12.441/2011 que introduziu o art. 980-A ao Código Civil de 20022.

Porém, em que pese essas disposições estabelecidas no Código Civil de 2002, o legislador não foi preciso em sua redação, na medida em que deu a possibilidade ao empresário rural e à sociedade que exerça a atividade rural de se inscreverem no Registro Público de Empresas Mercantis. Ou seja, a interpretação literal dos dispositivos em questão faz presumir que seria facultada (e não obrigatória) ao explorador da atividade rural a inscrição no referido órgão.

Sobre este tema, cita-se o enunciado nº 198 da III Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal que se pauta no efeito declaratório do registro, mas faz ressalvas:

Enunciado n. 198 – Art. 967 [CC 2002]: A inscrição do empresário na Junta Comercial não é requisito para a sua caracterização, admitindo-se o exercício da empresa sem tal providência. O empresário irregular reúne os requisitos do art. 966, sujeitando-se às normas do Código Civil e da legislação comercial, salvo naquilo em que forem incompatíveis com a sua condição ou diante de expressa disposição em contrário.

Marlon Tomazette confirma a facultatividade, porém o autor ressalta a importância do Registro (mesmo que de forma declaratória) para que o empresário rural possa se sujeitar ao regime empresarial, particularmente, à Falência ou Recuperação Judicial e Extrajudicial3.

Portanto, o produtor rural não registrado na Junta Comercial pode ser considerado regular, cumprindo, assim, o preceito do art. 48, caput, da Lei. 11.101/05, se for constatada a exploração de tal atividade por mais de 2 (dois) anos. O registro permite apenas que esse produtor rural receba a plena aplicação das normas previstas pelo direito empresarial – mas, frisa-se que, desde antes do registro, e mesmo sem ele, o produtor rural que pratica atos de empresa já tem todos os demais direitos que são inerentes a qualquer empresário regular. E dentre tais direitos se encontra, evidentemente, o direito de requerer sua Recuperação Judicial.

Cabe ressaltar que na Lei nº 11.101/2005 não há qualquer exigência no que diz respeito ao registro prévio do empresário, mas apenas à sua regularidade. O art. 48 apenas exige que o empresário que pretender pedir Recuperação Judicial exerça sua atividade de forma regular por pelo menos 2 (dois) anos. Sabe-se, assim, que o registro é condição de regularidade para todos os demais empresários – mas não para o empresário individual, como declara o artigo 971 do Código Civil.

Com relação à segunda questão suscitada, ainda quanto à legitimidade para requer Recuperação Judicial, a Lei 11.101/05 também foi expressa ao determinar que para fazer jus à Recuperação Judicial, não bastaria que o empresário ou a sociedade empresária estivesse exercendo atividade econômica exposta ao risco, seria necessário atender aos quatro requisitos cumulativos estabelecidos no art. 48 da Lei 11.101/20054.

O primeiro e mais relevante requisito para a questão aqui tratada é a necessidade de comprovação do exercício regular da atividade empresária há mais de 2 (dois) anos. Neste dispositivo está previsto um período mínimo de exploração de atividade econômica por parte do requerente da recuperação judicial, pois, conforme Fábio Ulhoa Coelho, “não concede a lei o acesso à recuperação judicial as requerentes que exploram empresa há menos tempo, por presumir que a importância desta para a econômica local, regional ou nacional ainda não pode ter-se consolidado5.

Dessa forma, seria natural a interpretação, e daí surge o segundo questionamento acerca da legitimidade do produtor rural, no sentido de que o empresário rural apenas estaria autorizado à pleitear a Recuperação Judicial, assim como os demais empresários e as sociedades empresárias, se pudesse comprovar o exercício regular de suas atividades há mais de 2 (dois) anos, além de não ser falido, não ter obtido concessão de Recuperação Judicial há menos de cinco anos e não ter sido condenado por crime falimentar.

Note-se que é sobre a comprovação do exercício regular da atividade empresária por no mínimo 2 (dois) anos que se encontra a maior celeuma acerca do requerimento de Recuperação Judicial pelos produtores rurais. No entanto, esta controvérsia não é inédita, de forma que já foi suscitada em alguns casos perante os Tribunais brasileiros. Esta questão chegou a ser tratada inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesta ocasião, o STJ considerou que a inscrição como empresário individual seria condição sine qua non, apesar de não haver a necessidade de comprovação de registro perante a Junta Comercial pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos, desde que o produtor rural tenha comprovado que, de fato, exercia referida atividade.

Este entendimento está baseado na tese de que o registro na Junta Comercial, embora obrigatório (art. 967 do CC), não é constitutivo, mas simplesmente declaratório da qualidade de empresário6. Esta tese se aplica ainda com mais ênfase ao produtor rural, pois o Código Civil deu a eles a opção de se registrar ou não. Segundo Luiz Tzirulnik, “o empresário rural só terá a qualidade efetiva de empresário mediante o exercício da atividade, já que o registro, embora seja obrigação legal, não é pressuposto para a confirmação da qualidade de empresário.7

Nesse sentido, se constata que, ainda que exista a exigência por parte da Lei n. 11.101/2005, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de que não seria necessária a comprovação do registro do empresário rural na Junta Comercial pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos para fins de obtenção da recuperação judicial e, via de consequência, se conclui, assim, que o produtor rural estaria dispensado da apresentação da “Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica – DIPJ”, bastando apenas a comprovação do exercício da atividade rural, por meio do número de inscrição Secretaria de Fazenda do Estado em que exerce a sua atividade, justamente pelo fato de o Código Civil de 2002 ter concedido a opção ao empresário rural de se registrar (ou não) na Junta Comercial, mesmo que de fato exercesse atividade empresária8.

Por fim, com relação à terceira questão destacada acima sobre o marco temporal para determinação dos créditos submetidos ou não submetidos aos efeitos da Recuperação Judicial, alguns credores têm defendido a tese de que estariam submetidos apenas os créditos derivados de fatos geradores posteriores ao registros do produtor rural na Junta Comercial.

A referida tese ainda não foi apreciada pelo Poder Judiciário. No entanto, entende-se que o credor que tenha contratado com o produtor rural poderia supor que, apesar de não estar registrado como empresário no momento da assinatura do contrato, o Código Civil teria concedido à este agente econômico uma mera faculdade, de modo que a qualquer tempo poderia estar equiparado à condição de empresário e, assim, fazer jus às regras próprias de empresário, como a Recuperação Judicial. Utiliza-se, portanto, a máxima da ignorantia legis neminem excusat9.

Alterações Legislativas

Com o advento do PL nº 10.220/2018, de iniciativa do Presidente da República, ainda em fase inicial de tramitação na Câmara dos Deputados, oriundo do grupo de trabalho criado no âmbito do Ministério da Fazenda em dezembro de 2016, composto por eminentes advogados, magistrados, procuradores, professores, entre outros atores de interesse, com a finalidade de estudar, consolidar e propor medidas voltadas ao aprimoramento da Lei nº 11.101/2005, surgiu-se a oportunidade de, por intermédio da evolução legislativa, promover a devida pacificação social quanto à controvérsia apontada neste artigo.

A primeira versão do aludido até então anteprojeto de lei, ainda no âmbito da comissão de juristas, de imediato alargou o rol dos legitimados para as recuperações judicial e extrajudicial, assim como para a falência. Desde a epígrafe se encontrou expressa essa abrangência, pois dizia ela (a epígrafe) que esta lei “Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência dos agentes econômicos”. E já adentrando nas disposições propriamente ditas da citada anteproposta, encontrava-se em seu artigo primeiro e parágrafos, as seguintes determinações:

“Art. 1º. Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência dos agentes econômicos, doravante referidos simplesmente como devedor.

§1º Considera-se agente econômico qualquer pessoa física ou jurídica que exerça ou tenha por objeto o exercício de atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade.

§2º Os empresários e as sociedades empresárias estão sujeitos à decretação de falência.

§3º O agente econômico não empresário passa a sujeitar-se ao regime falimentar após ter ingressado com pedido de recuperação judicial.” (grifou-se)

Nota-se, portanto, que a primeira redação ampliou o leque de pessoas – física e/ou jurídicas – autorizadas a pleitear a recuperação judicial, promover a recuperação extrajudicial e mesmo falir, ao substituir, logo no art. 1º, os termos “empresário” e “sociedade empresária” por “agentes econômicos”. Os novos legitimados – os agentes econômicos – que, como apontado, podem ser pessoas físicas e/ou jurídicas, não necessitando de inscrição no registro do comércio e, em princípio, não sendo legitimados para a falência como o são os empresários e as sociedades empresárias, só vindo a ela (a falência) se sujeitarem após o ingresso do pedido de Recuperação Judicial; necessário, entretanto, que a exemplo dos empresários e das sociedades empresárias, exerçam qualquer atividade econômica em nome próprio.

Sobrevém, todavia, que a opção final do anteprojeto de lei remetida pelo Ministério da Fazenda à Casa Civil, em novembro de 2017, manteve, ipsis litteris, a disposição já existente na Lei nº 11.101/2005, restringindo os legitimados para as recuperações judicial e extrajudicial, assim como para a falência, ao “empresário” e à “sociedade empresária”, opção mantida na versão derradeira de iniciativa do Presidente da República.

De qualquer modo, este ensaio tem o propósito de estimular a reflexão e o debate acadêmico, legislativo e até mesmo forense, na expectativa de que o PL nº 10.220/2018 encerre, de uma vez por todas, integral e qualquer hesitação sobre a recuperação judicial, extrajudicial e a falência para os produtores Rurais – seja concedendo anuência expressa ou proibição explícita, o que não se verifica no texto enviado pelo Presidente da República à casa iniciadora, isto é, à Câmara dos Deputados. A legislação de referência deve, afinal, sempre buscar a estabilidade, a isonomia e a paz social, visando à segurança jurídica dos atores envolvidos.

Conclusão

Dessa forma, não há outra conclusão se não a de que seria muito injusto que os produtores rurais não pudessem se valer dos benefícios trazidos pela Recuperação Judicial apenas por não cumprir um requisito formal de registro como empresário individual por no mínimo 2 (dois) anos, considerando que a economia brasileira tem suas bases sustentadas firmemente pela vocação rural. 

Nesse sentido, sob o rigor dos artigos 966, 967 e 971 do Código Civil, o empresário rural terá direito à Recuperação Judicial, desde que comprove o exercício de sua atividade empresarial há pelo menos dois anos, independentemente de ser ou não registrado, mediante apresentação da Declaração do Imposto de Renda, da Carteira de Produtor Rural ou da inscrição na Secretaria de Fazenda, além de reunir todos os demais requisitos exigidos pela Lei nº 11.101/2005.

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1 COELHO Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 48.

2 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/ 2005: comentada artigo por artigo. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista do Tribunal, 2013. p. 63 – 66.

3 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Falência e Recuperação de Empresas. Vol. 3. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 18.

4 COELHO Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 168 – 170.

5 COELHO Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 169.

6 REsp. 1.193.115-MT, Min. Nacy Andrighi, 3a Turma, dj. 28.8.2013 e AI 2.062.908-35.2018.8.26.0000, Rel. Hamid Bdine, dj. 04.07.2018.

7 TZIRULNIK, Luiz. Empresas e Empresários, 2. ed., São Paulo: RT, 2005, p. 34.

8 Julgados que corroboraram o afastamento da exigência dos 2 (dois) anos: AI 2.037.064-59.2013.8.26.000 – TJSP – Banco Votorantim x Osmar da Silva – 2a Câmara – dj. 22.09.2014 / AI CV 1.0000.17.026108-5/001 – TJMG – Cx. Ec. Federal x Beca Particip. Empreendimentos – 1a Câmara Cível – dj. 14.11.2017 / AI 2.048.349-10.2017.8.26.0000 – TJSP – Pluma Avícola Ltda. X Humberto Gândara Barufi – 2a Câmara – dj. 30.10.2017 / AI 2.251.128-51.2017.8.26.0000 – TJSP – Banco Bradesco x José Serra Netto – 1a Câmara – dj. 9.5.2018 / AI 2.068.908-35.2018.8.26.0000 – TJSP – dj. 4.7.2018 / MS 0032941-71.2018.8.19.0000 e 0019729-80.2018.8.19.0000 – TJRJ – Bancos Itaú e Santander x Juarez Quintão Hosken – 22a Câmara – dj 22.11.2018.

9 Conforme entendimento do Professor Manoel Justino Bezerra Filho.

FONTE – https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/guerra-fora-das-muralhas-09012017

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